- Que preguiça!
- Cara, eu tava muito precisando dessa praia, tô muito cansado
- Ai, e essa maresia?! Nossa, esse cheiro é bom demais
- Esse cheiro é uma delícia, né?
- Cara, por falar em cheiro... Ontem, no meio da tarde, eu senti o seu cheiro
- Sério?
- Eu tava num ônibus, tava indo pra... pra aquela minha médica chinesa
- Sei
- Aí o seu cheiro veio! O cheiro do seu corpo! Cara, podia ter vindo qualquer cheiro, o cheiro da chuva lá fora, da fumaça dos carros, mas veio o seu cheiro!
- Cara...!
- Eu não tava nem pensando em você, eu tava... eu tava lendo um texto sobre prosopopeia
- Prosopopeia? O que é prosopopeia?
- Prosopopeia é... como se fosse uma figura de estilo, assim. Sabe quando você fala "o sol está triste"? É, quando você usa... usa os seres inanimados, objetos, seres irracionais, e mistura com ações e com sentimentos humanos
- E eu me enquadro o quê nisso tudo? Nos seres irracionais?
- Claro! Óbvio!
- Cara, mas muito doido. Seu cheiro veio, assim, de baixo pra cima, sabe? Assim, como se tivesse no meu cabelo, todo impregnado. Muito doido! Eu cheguei a procurar você no ônibus
- Mas cê sabia que eu não tava aqui
- Eu sabia que era impossível, você-- você não tinha nem chegado
- Não, é, eu tava vindo de Santa Bárbara do Oeste. Eu te falei que eu tava vindo pra te ver
- Pois é. O que me deixou bastante surpresa, diga-se de passagem
- Por quê?
- Ah, porque é contra tudo o que a gente tinha combinado
- Como assim?
- A gente não tinha combinado que nossos encontros seriam restritos?
- Restritos como?
- Restritos, ué. Sei lá, que nem nessa praia aqui, vazia. Esse cenário aqui, que não é meu, não é seu, não é de ninguém. Só a gente mesmo
- Pô, mas a gente já se encontrou em tantos outros lugares
- Eu sei, mas sempre a gente viajando, sempre com a mala na mão, sempre na casa de outra pessoa, com as fotos de outras pessoas nas paredes, enfim... Não era coisa da gente
- Pô, Maria, você falando assim parece que cê não lembra de nada que a gente viveu nesses últimos meses
- Ah, não é verdade, eu lembro de tudo. Nossa, eu lembro demais da primeira vez que a gente se viu, no avião
- Lembra do "chicken or pasta?"?
- Meus "Blood Marys"
- Eu lembro da primeira vez que eu fiquei nua pra você
- Isso eu lembro também
- Lembro que você descobriu uma pinta na minha bunda. Inacreditável! Sabe que ninguém nunca tinha reparado nessa pinta?
- Jura?! É porque é...
- Era pequenininha
- É, e não é na bunda, assim, é ali na dobradiça da bunda
- Você é muito observador
- Vem cá, cê ficou falando de... de encontros restritos e tal, mas depois trouxe à tona todas as nossas primeiras vezes. Isso é o quê? É uma... é uma maneira de continuar fazendo planos entre a gente?
- Não, não tô fazendo plano nenhum. Nem que eu tivesse solteira. A gente não ia dar certo. Eu não consigo mais ver a gente junto. Estranho, né?
- Nem se a gente tivesse um pacto de... infidelidade?
- Mas não é exatamente isso que a gente tem agora? Figura...!
(Telefone tocando)
- Alô?
- Alô. Oi, tudo bem? Desculpa, cê tava dormindo?
- Quem é?
- É... você me deu seu número no avião, lembra?
- Oi, Maria!
- Não, não, meu nome é Alice
- Alice? Pô, foi mal, Alice, desculpe
- Tudo bem
- Eu não sei por que que eu falei Maria. Na real, eu ainda tô meio no jet lag e eu tomei uns remédios pra dormir no avião
- É, você tava bem doidão naquele voo
- Ah, é? Por quê? Eu falei alguma besteira?
- Olha... Depois que cê entornou a segunda daquelas garrafinhas que a gente ganhou...
- Putz!
- Cê começou a falar umas coisas... Como é que era mesmo? Ah, um papo meio nada a ver sobre celulares e fósseis
- Celulares e fósseis?
- É. Cê ficou... cê ficou um bom tempo aí falando que os... sei lá, que os celulares são feitos a partir do mundo mineral. E aí que eles tinham dentro deles, assim, o resto de tempos passados, tipo, que esses fósseis tavam adormecidos há muito tempo embaixo da terra, e aí a gente trouxe eles à tona e fica andando com isso no bolso. Uma mistura de Poltergeist com Tamagotchi
- Ah, tá. Nossa, eu não lembro de nada desse voo
- Ah, você não lembra?
- Não lembro. Mas eu tenho esses apagões às vezes. Eu disse mais alguma coisa?
- Você disse, sim. Cê disse que me conhecia do futuro
- Uau!
- É, e que a gente morava numa fazenda no interior da Tailândia
- Olha!
- Lá não tinha nem sinal de celular nem de rádio, nada. Não tinha nem energia elétrica, na verdade. E daí você falou dessa nossa vida no futuro
- Ah, é? E como é que era a nossa vida no futuro?
- Olha, era interessante. A gente fica trepando sem parar e lendo muito
- Nossa, adorei
- É, não tinha... não tinha internet, não tinha TV, não tinha nada, então basicamente a nossa vida no futuro era – ou vai ser – trepar, ler, comer e dormir muito
- Pô, adorei a nossa vida no futuro, hein?! Tomara que chegue logo. E... e sobre esses livros aí?
- Que livros?
- Ué, os livros que a gente vai ler no futuro
- Não, você não falou nada disso
- Ah, não?
- Cê apagou, cê dormiu no meu colo. Feito uma criança
- Nossa, que vergonha
- Não, não tem vergonha, não. Eu achei bonito o jeito que cê se entrega
- Que bom. E que horas são agora?
- Olha, são quase oito da noite
- Caralho, já são oito da noite!
- Vem cá, cê tá com fome? Tá afim de comer alguma coisa?
- Tô, tô, tô morrendo de fome
- Se eu te der um endereço, você me encontra lá daqui a, sei lá, meia hora?
- Beleza, me manda o endereço pelo Whatsapp
- Falou
Um enorme rabo de baleia
Cruzou a sala
Sem barulho algum, o bicho afundou nas tábuas
E sumiu
O que eu queria
Era abraçar
A baleia
E mergulhar
Com ela
E seguir
Com ela
E seguir
Com ela
E mergulhar
Com ela
Sinto um tédio pavoroso desses dias
De água parada acumulando
Mosquitos na cozinha
E a urgência
De seguir
Para uma terça ou quarta boia
Porque a vontade é de abraçar
Um enorme rabo de baleia
E seguir
Com ela
E mergulhar
Com ela
E seguir
Com ela
E mergulhar
Com ela
E seguir
Seguir
Com ela
E mergulhar
Com ela
E seguir
Seguir
Com ela
E mergulhar
Com ela
Com ela
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